terça-feira, 26 de junho de 2012

Biografia do autor



  Caio Fernando de Abreu



Caio Fernando de Abreu nasceu na cidade de Santiago no dia 12 de setembro de 1948 foi um jornalista, dramaturgo e escritor brasileiro.
Apontado como um dos expoentes de sua geração, a obra de Caio Fernando Abreu, escrita num estilo econômico e bem pessoal, fala de sexo, de medo, de morte e, principalmente, de angustiante solidão. Apresenta uma visão dramática do mundo moderno e é considerado um "fotógrafo da fragmentação contemporânea".
Uma de suas principais obras é o livro ‘’ Morangos Mofados’’. É um livro que contos que é considerado sua obra prima e considerado pela revista   “Isto é” o melhor livro de 1982.
Caio Fernando de Abreu morreu em Porto Alegre no dia 25 de fevereiro de 1996, dois anos depois de descobrir que era portador do vírus HIV.

Resumo do conto


    Resumo do conto

O autor conta a história de um filho que depois de muito tempo vai visitar a mãe, que vive sozinha, que é decadente, fraca assim como o lugar onde ela vive.
   O filho descreve com detalhes a vida de sua mãe, seu cheiro, seus movéis e sua  cadela Linda, os 3 personagens demonstram decadência, porém visível a da mãe para o filho mas não a do filho para mãe.
Na cozinha acontece o diálogo, ele esconde e
   disfarça a magreza e a queda de cabelos numa    cena em que ela o olha diretamente, ele mostra no  conto que esconde algo, e no final o leitor dá referências de que o personagem é portador do vírus HIV, além de ser perceptível a sua homossexualidade quando a mãe pergunta sobre um antigo e inseparável amigo.
     A verdade no entanto, é que ele não tem coragem para falá-la a sua mãe, então conversam até que ela vai dormir.
Quando fica só, ele olha para a cachorra Linda que tem manchas sob o pêlo, nesse momento tira a camisa e vê no espelho seu próprio peito, também coberto com manchas.
 O autor, no conto, muitas vezes fala da casa e do tapete dizendo que estão desbotados e velhos e indiretamente faz uma comparação a ele,sua mãe e a Linda que estão velhos e parecidos com a casa e o tapete.

O conto.


Linda, uma história horrível” de Caio Fernando Abreu

Só depois de apertar muitas vezes a campainha foi que escutou o rumor de passos descendo a escada. E reviu o tapete gasto, 
antigamente púrpura, depois apenas vermelho, mais tarde rosa cada vez mais claro — agora, que cor? — e ouviu o latido desafinado
de um cão, uma tosse noturna, ruídos secos, então sentiu a luz acesa do interior da casa filtrada pelo vidro cair sobre sua cara de
barba por fazer, três dias. Meteu as mãos nos bolsos, procurou um cigarro ou um chaveiro para rodar entre os dedos, antes que se
abrisse a janelinha no alto da porta.
Enquadrado pelo retângulo, o rosto dela apertava os olhos para vê-lo melhor. Mediram-se um pouco assim — de fora, de
dentro da casa —, até ela afastar o rosto, sem nenhuma surpresa. Estava mais velha, viu ao entrar. E mais amarga, percebeu depois.
— Tu não avisou que vinha — ela resmungou no seu velho jeito azedo, que antigamente ele não compreendia. Mas agora, tantos
anos depois, aprendera a traduzir como que-saudade, seja-benvindo, que-bom-ver-você ou qualquer coisa assim. Mais carinhosa,
embora inábil.
Abraçou-a, desajeitado. Não era um hábito, contatos, afagos. Afundou tonto, rápido, naquele cheiro conhecido — cigarro,
cebola, cachorro, sabonete, creme de beleza e carne velha, sozinha há anos. Segurando-o pelas duas orelhas, como de costume, ela o
beijou na testa. Depois foi puxando-o pela mão, para dentro.
— A senhora não tem telefone — explicou. — Resolvi fazer uma surpresa.
Acendendo luzes, certa ânsia, ela o puxava cada vez mais para dentro. Mal podia rever a escada, a estante, a cristaleira, os
porta-retratos empoeirados. A cadela se enrolou nas pernas dele, ganindo baixinho.
— Sai, Linda — ela gritou, ameaçando um pontapé. A cadela pulou de lado, ela riu. — Só ameaço, ela respeita. Coitada, quase
cega. Uma inútil, sarnenta. Só sabe dormir, comer e cagar, esperando a morte.
— Que idade ela tem? — ele perguntou. Que esse era o melhor jeito de chegar ao fundo: pelos caminhos transversos, pelas
perguntas banais. Por trás do jeito azedo, das flores roxas do robe.
— Sei lá, uns quinze. — A voz tão rouca. — Diz—que idade de cachorro a gente multiplica por sete.
Ele forçou um pouco a cabeça, esse era o jeito:
— Uns noventa e cinco, então.
Ela colocou a mala dele em cima de uma cadeira da sala. Depois apertou novamente os olhos. E espiou em volta, como se
acabasse de acordar:
— O quê?
— A Linda. Se fosse gente, estaria com noventa e cinco anos.
Ela riu:
— Mais velha que eu, imagina. Velha que dá medo. — Fechou o robe sobre o peito, apertou a gola com as mãos. Cheias de
manchas escuras, ele viu, como sardas (ce-ra-to-se, repetiu mentalmente), pintura alguma nas unhas rentes dos dedos amarelos de
cigarros.
— Quer um café?
— Se não der trabalho — ele sabia que esse continuava sendo o jeito exato, enquanto ela adentrava soberana pela cozinha,
seu reino.
Mãos nos bolsos, olhou em volta, encostado na porta.
As costas dela, tão curvas. Parecia mais lenta, embora guardasse o mesmo jeito antigo de abrir e fechar sem parar as portas
dos armários, dispor xícaras, colheres, guardanapos, fazendo muito ruído e forçando-o a sentar — enquanto ele via. Manchadas de
gordura, as paredes da cozinha. A pequena janela basculante, vidro quebrado. No furo do vidro, ela colocara uma folha de jornal.
País mergulha no caos, na doença e na miséria — ele leu. E sentou na cadeira de plástico rasgado.
— Tá fresquinho — ela serviu o café. — Agora só consigo dormir depois de tomar café.
—A senhora não devia. Café tira o sono.
Ela sacudiu os ombros:
— Dane-se. Comigo sempre foi tudo ao contrário.
A xícara amarela tinha uma nódoa escura no fundo, bordas lascadas. Ele mexeu o café, sem vontade. De repente, então,
enquanto nem ele nem ela diziam nada, quis fugir. Como se volta a fita num videocassete, de costas, apanhar a mala, atravessar a
sala, o corredor de entrada, ultrapassar o caminho de pedras do jardim, sair novamente para a ruazinha de casas quase todas
brancas. Até algum táxi, o aeroporto, para outra cidade, longe do Passo da Guanxuma, até a outra vida de onde vinha. Anônima, sem
laços nem passado. Para sempre, para nunca mais. Até a morte de qualquer um dos dois, teve medo. E desejou. Alívio, vergonha.
— Vá dormir — pediu. — É muito tarde. Eu não devia ter vindo assim, sem avisar. Mas a senhora não tem telefone.
Ela sentou à frente dele, o robe abriu-se. Por entre as flores roxas, ele viu as inúmeras linhas da pele, papel de seda
amassado. Ela apertou os olhos, espiando a cara dele enquanto tomava um gole de café.— Que que foi? — perguntou, lenta. E esse era o tom que indicava a abertura para um novo jeito. Mas ele tossiu, baixou os
olhos para a estamparia de losangos da toalha. Vermelho, verde. Plástico frio, velhos morangos.
— Nada, mãe. Não foi nada. Deu saudade, só isso. De repente, me deu tanta saudade. Da senhora, de tudo.
Ela tirou um maço de cigarros do bolso do robe:
— Me dá o fogo.
Estendeu o isqueiro. Ela tocou na mão dele, toque áspero das mãos manchadas de ceratose nas mãos muito brancas dele.
Carícia torta:
— Bonito, o isqueiro.
— É francês.
— Que é isso que tem dentro?
— Sei lá, fluido. Essa coisa que os isqueiros têm. Só que este é transparente, nos outros a gente não vê.
Ela ergueu o isqueiro contra a luz. Reflexos de ouro, o  líquido verde brilhou. A cadela entrou por baixo da mesa, ganindo
baixinho.
Ela pareceu não notar, encantada com o por trás do verde, líquido dourado.
— Parece o mar — sorriu. Bateu o cigarro na borda da xícara, estendeu o isqueiro de volta para ele. — Então quer dizer que o
senhor veio me visitar? Muito bem.
Ele fechou o isqueiro na palma da mão. Quente da mão manchada dela.
— Vim, mãe. Deu saudade.
Riso rouco:
— Saudade? Sabe que a Elzinha não aparece aqui faz mais de mês? Eu podia morrer aqui dentro. Sozinha. Deus me livre. Ela
nem ia ficar sabendo, só se fosse pelo jornal. Se desse no jornal. Quem se importa com um caco velho?
Ele acendeu um cigarro. Tossiu forte na primeira tragada:
— Também moro só, mãe. Se morresse, ninguém ia ficar sabendo. E não ia dar no jornal.
Ela tragou fundo. Soltou a fumaça, círculos. Mas não acompanhou com os olhos. Na ponta da unha, tirava uma lasca da borda
da xícara.
— É sina — disse. — Tua avó morreu só. Teu avô morreu só. Teu pai morreu só, lembra? Naquele fim de semana que eu fui pra
praia. Ele tinha horror do mar. Uma coisa tão grande que mete medo na gente, ele dizia. Jogou longe a bolinha com a pintura da
xícara. — E nem um neto, morreu sem um neto nem nada. O que mais ele queria.
— Já faz tempo, mãe. Esquece — ele endireitou as costas, doíam. Não, decidiu: naquele poço, não. O cheiro, uma semana,
vizinhos telefonando. Passou as pontas dos dedos pelos losangos desbotados da toalha.  — Não sei como a senhora consegue
continuar morando aqui sozinha. Esta casa é grande demais pra uma pessoa só. Por que não vai morar com a Elzinha?
Ela fingiu cuspir de lado, meio cínica. Aquele cinismo de telenovela não combinava com o robe desbotado de flores roxas,
cabelos quase inteiramente brancos, mãos de manchas marrons segurando o cigarro quase no fim.
— E aguentar o Pedro, com aquela mania de grandeza? Pelo amor de Deus, só se eu fosse sei lá. Iam ter que me esconder no
dia das visitas, Deus me livre. A velha, a louca, a bruxa. A megera socada no quartinho de empregada, feito uma negra. — Bateu o
cigarro. — E como se não bastasse, tu acha que iam me deixar levar a Linda junto?
Embaixo da mesa, ao ouvir o próprio nome a cadela ganiu mais forte.
— Também não é assim, não é, mãe? A Elzinha tem a faculdade. E o Pedro no fundo é boa gente. Só que.
Ela remexeu nos bolsos do robe. Tirou uns óculos de hastes remendadas com esparadrapo, lente rachada.
— Deixa eu te ver melhor — pediu.
Ajeitou os óculos. Ele baixou os olhos. No silêncio, ficou ouvindo o tic-tac do relógio da sala. Uma barata miúda riscou o
branco dos azulejos atrás dela.
— Tu estás mais magro — ela observou. Parecia preocupada. — Muito mais magro.
— É o cabelo — ele disse. Passou a mão pela cabeça quase raspada. E a barba, três dias.
— Perdeu cabelo, meu filho.
— É a idade. Quase quarenta anos. — Apagou o cigarro. Tossiu. — E essa tosse de cachorro?
— Cigarro, mãe. Poluição.
Levantou os olhos, pela primeira vez olhou direto nos olhos dela. Ela também olhava direto nos olhos dele. Verde desmaiado
por trás das lentes dos óculos, subitamente muito atentos. Ele pensou: é agora, nesta contramão. Quase falou. Mas ela piscou
primeiro. Desviou os olhos para baixo da mesa, segurou com cuidado a cadela sarnenta e a trouxe até o colo.
— Mas vai tudo bem?
— Tudo, mãe.
— Trabalho?
Ele fez que sim. Ela acariciou as orelhas sem pelo da cadela. Depois olhou outra vez direto para ele:
— Saúde? Diz que tem umas doenças novas aí, vi na tevê. Umas pestes.
— Graças a Deus — ele cortou. Acendeu outro cigarro, as mãos tremiam um pouco. — E a dona Alzira, firme?
A ponta apagada do cigarro entre os dedos amarelos, ela estava recostada na cadeira. Olhos apertados, como se visse por
trás dele. No tempo, não no espaço. A cadela apoiara a cabeça na mesa, os olhos branquicentos fechados. Ela suspirou, sacudiu os
ombros:
— Coitada. Mais esclerosada do que eu.
— A senhora não está esclerosada.
— Tu que pensa. Tem vezes que me pego falando sozinha pelos cantos. Outro dia, sabe quem eu chamava o dia inteiro?  —
Esperou um pouco, ele não disse nada. — A Cândida, lembra dela? Ô negrinha boa, aquela. Até parecia branca. Fiquei chamando,
chamando o dia inteiro. Cândida, ô Cândida. Onde é que tu te meteu, criatura? Aí me dei conta.— A Cândida morreu, mãe.
Ela tornou a passar a mão pela cabeça da cadela. Mais devagar, agora. Fechou os olhos, como se as duas dormissem.
— Pois é, esfaqueada. Que nem um porco, lembra? — Abriu os olhos. — Quer comer alguma coisa, meu filho?
— Comi no avião.
Ela fingiu cuspir de lado, outra vez.
— Cruz credo. Comida congelada, Deus me livre. Parece plástico. Lembra daquela vez que eu fui? — Ele sacudiu a cabeça, ela
não notou. Olhava para cima, para a fumaça do cigarro perdida contra o teto manchado de umidade, de mofo, de tempo, de solidão.
— Fui toda chique, parecia uma granfa. De avião e tudo, uma madame. Frasqueira, raiban. Contando, ninguém acredita.  —
Molhou um pedaço de pão no café frio, colocou-o na boca quase sem dentes da cadela. Ela engoliu de um golpe. — Sabe que eu gostei
mais do avião do que da cidade? Coisa de louco, aquela barulheira. Nem parece coisa de gente, como é que tu aguenta?
— A gente acostuma, mãe. Acaba gostando.
— E o Beto? — ela perguntou de repente. E foi baixando os olhos até encaixarem, outra vez, direto nos olhos dele.
Se eu me debruçasse?  — ele pensou. Se,  então, assim. Mas olhou para os azulejos na parede atrás dela. A barata tinha
desaparecido.
— Tá lá, mãe. Vivendo a vida dele.
Ela voltou a olhar o teto:
— Tão atencioso, o Beto. Me levou pra jantar, abriu a porta do carro pra mim. Parecia coisa de cinema. Puxou a cadeira do
restaurante pra eu sentar. Nunca ninguém tinha feito isso. — Apertou os olhos. — Como era mesmo o nome do restaurante? Um
nome de gringo.
— Casserole, mãe. La Casserole. — Quase sorriu, ele tinha uns olhos de menino, lembrou. — Foi boa aquela noite, não foi?
— Foi — ela concordou. — Tão boa, parecia filme. — Estendeu a mão por sobre a mesa, quase tocou na mão dele. Ele abriu os
dedos, certa ânsia. Saudade, saudade. Então ela recuou, afundou os dedos na cabeça pelada da cadela.
— O Beto gostou da senhora. Gostou tanto — ele fechou os dedos. Assim fechados, passou—os pelos pelos do próprio braço.
Umas memórias, distância. — Ele disse que a senhora era muito chique.
— Chique, eu? Uma velha grossa, esclerosada. — Ela riu, vaidosa, mão manchada no cabelo branco. Suspirou. — Tão bonito. Um
moço tão fino, aquilo é que é moço fino. Eu falei pra Elzinha, bem na cara do Pedro. Pra ele tomar como indireta mesmo, eu disse bem
alto, bem assim. Quem não tem berço, a gente vê logo na cara. Não adianta ostentar, tá escrito. Que nem o Beto, aquela calça
rasgadinha. Quem ia dizer que era um moço assim tão fino, de tênis? — Voltou a olhar dentro dos olhos dele. — Isso é que é amigo,
meu filho. Até meio parecido contigo, eu fiquei pensando. Parecem irmãos. Mesma altura, mesmo jeito, mesmo.
— A gente não se vê faz algum tempo, mãe.
Ela debruçou um pouco, apertando a cabeça da cadela contra a mesa. Linda abriu os olhos esbranquiçados. Embora cega,
também parecia olhar para ele. Ficaram se olhando assim. Um tempo  quase insuportável, entre a fumaça dos cigarros, cinzeiros
cheios, xícaras vazias — os três, ele, a mãe e Linda.
— E por quê?
— Mãe — ele começou. A voz tremia. — Mãe, é tão difícil — repetiu. E não disse mais nada.
Foi então que ela levantou. De repente, jogando a cadela ao chão como um pano sujo. Começou a recolher xícaras, colheres,
cinzeiros, jogando tudo dentro da pia. Depois de amontoar a louça, derramar o detergente e abrir as torneiras, andando de um lado
para outro enquanto ele ficava ali sentado, olhando para ela, tão curva, um pouco mais velha, cabelos quase inteiramente brancos,
voz ainda mais rouca, dedos cada vez mais amarelados pelo fumo, guardou os óculos no bolso do robe, fechou a gola, olhou para ele e
— como quem quer mudar de assunto, e esse também era um sinal para um outro jeito que, desta vez sim, seria o certo — disse:
— Teu quarto continua igual, lá em cima. Vou dormir que amanhã cedo tem feira. Tem lençol limpo no armário do banheiro.
Então fez uma coisa que não faria, antigamente. Segurou-o pelas duas orelhas para beijá-lo não na testa, mas nas duas faces.
Quase demorada. Aquele cheiro  — cigarro, cebola, cachorro, sabonete, cansaço, velhice. Mais qualquer coisa úmida que parecia
piedade, fadiga de ver. Ou amor. Uma espécie de amor.
— Amanhã a gente fala melhor, mãe. Tem tempo, dorme bem. Debruçado na mesa, acendeu mais um cigarro enquanto ouvia os
passos dela subindo pesados pela escada até o andar superior. Quando ouviu a porta do quarto bater, levantou e saiu da cozinha.
Deu alguns passos tontos pela sala. A mesa enorme, madeira escura. Oito lugares, todos vazios. Parou em frente ao retrato do
avô — rosto levemente inclinado, olhos verdes aguados que eram os mesmos da mãe e também os dele, heranças. No meio do campo,
pensou, morreu só com um revólver e sua sina. Levou a mão até o bolso interno do casaco, tirou a pequena garrafa estrangeira e
bebeu. Quando a afastou, gotas de uísque rolaram pelos cantos da boca, pescoço, camisa, até o chão. A cadela lambeu o tapete
gasto, olhos quase cegos, língua tateando para encontrar o líquido.
Ele abriu os olhos. Como depois de uma vertigem, percebeu-se a olhar fixamente para o grande espelho da sala. No fundo do
espelho na parede da sala de uma casa antiga, numa cidade provinciana, localizou a sombra de um homem magro demais, cabelos
quase raspados, olhos assustados feito os de uma criança. Colocou a garrafa sobre a mesa, tirou o casaco. Suava muito. Jogou  o
casaco na guarda de uma cadeira. E começou a desabotoar a camisa manchada de suor e uísque.
Um por um, foi abrindo os botões. Acendeu a luz do abajur, para que a sala ficasse mais clara quando, sem camisa, começou a
acariciar as manchas púrpura, da cor antiga do tapete na escada — agora, que cor? —, espalhadas embaixo dos pelos do peito. Na
ponta dos dedos, tocou o pescoço. Do lado direito, inclinando a cabeça, como se apalpasse uma semente no escuro. Depois foi
dobrando os joelhos até o chão. Deus, pensou, antes de estender a outra mão para tocar no pelo da cadela quase cega, cheio de
manchas rosadas. Iguais às do tapete gasto da escada, iguais às da pele do seu peito, embaixo dos pelos. Crespos, escuros, macios.
— Linda — sussurrou. — Linda, você é tão linda, Linda.

Apresentação

Neste blog iremos falar sobre o conto ''Linda,uma história horrível'' do autor Caio Fernando de Abreu